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OPINIÃO: Sobre faxinas, lembranças e afetos

Existe uma cultura milenar japonesa de limpeza anual minuciosa, não somente nos lares, mas também nos locais de trabalho e em prédios públicos. Esse mesmo costume, normalmente antes de findar o ano, é observado em outros povos, como entre os iranianos, escoceses, irlandeses, sendo também uma prática na tradição judaica.

Na minha mocidade, também antecedendo o final do ano, as famílias organizavam uma grande faxina dentro das residências, onde cada cantinho era limpado com afinco. Paredes, venezianas, cortinas, portas e vidros cuidadosamente lavados. Roupeiros, armários e gavetas esvaziados e objetos selecionados para serem jogados no lixo ou doados.

Formava-se um verdadeiro mutirão familiar para a tarefa. A desorganização que antecedia o trabalho e que encheria sacos e caixas, demorava muito mais do que se imaginava. Ocorre que eram encontrados verdadeiros tesouros nos objetos esquecidos que, ao serem redescobertos, traziam lembranças que enchiam nossos corações. Por isso, muitas vezes parávamos e conversávamos animadamente em uma competição de memórias de um passado longínquo.

A flor seca dentro do livro que se abriu ao ser retirado da estante fazia recordar uma tímida declaração de um amor adolescente. O papel de presente cuidadosamente dobrado e guardado no fundo da gaveta trazia lembrança de um agrado inesperado e o abraço apertado de alguém que já partiu. A antiga xícara, encontrada com a asa quebrada, despertava o odor de um café caseiro, tomado no meio da tarde, acompanhado de bolo quente ou pipoca, que hoje já não mais acontece. O vidro de perfume vazio, mas que ainda mantinha um cheiro refrescante de lavanda, fazia sentir o calor e o aconchego de um abraço que não mais pode ser recebido.

As fotografias reveladas em papel cartonado, emoldurados por uma margem branca, esquecidas numa caixa antiga, mostrava um tempo adormecido dentro de nossos corações. A foto do aniversário infantil nos fazia sentir novamente o sabor das guloseimas, preparadas com dias de antecedência, e reviver a euforia dos presentes recebidos que iam sendo depositados sobre a cama. A fotografia na escola, com a bandeira ao fundo e um globo na mesa, mostrava um rosto infantil e sério, numa expressão que hoje ainda pode ser reconhecida, atrás de marcas do tempo que se foram acentuando. A tradicional pose dos noivos de rostos colados, sentados no banco traseiro de um carro antigo, recontava uma bela história de amor, a mesma que deu origem à família que se uniu na tarefa.

Recordando momentos felizes e emoções sentidas, estaremos fortalecendo vínculos e afetos. A faxina anual pode ser trabalhosa, mas as boas lembranças que ela pode nos trazer merecem todo o esforço e o cansaço que possamos sentir. Afinal, como Toquinho já cantou, "recordar é viver".

A mudança de ano já aconteceu, mas ainda dá tempo: vamos faxinar em família?

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